sábado, junho 02, 2007

Cegueira


Dia desses vagava perdido num shopping esperando a Ju, minha namorada, comprar roupas. Como sempre, fico a olhar os livros de uma Mega Store. Coisa banal. Errava meu olhar por entre as capas coloridas e chamativas - cada uma a prometer um mundo próprio, em que o devaneio ali embutido tirava-lhe a materialidade - e, vez ou outra, tateava-os devolvendo-lhes a existência material; os dedos nesse instante percorrem as dobras e as imperfeições calculadas... Sigo a trilha indicada pela sessão de literatura brasileira, música (detenho-me um pouco mais) e chego com certa alegria à sessão de quadrinhos - tão sedutora e sorridente! O amor táctil nessa sessão é mais acentuado. Ali a sensação de tempo e espaço é, se não destruída, pelo menos amolecida; como naquele quadro de Salvador Dalí. Perdido em instantes naquela satisfação erótica e bovina não percebo que ao meu lado está uma pessoa. Normal, não fosse a atitude de reverência dele (era um homem entre, aparentemente, 35 e 40 anos de idade); curvava-se até o rés do chão com o livro na mão. Poxa, pensei. Continuei a olhar os quadrinhos, com certo incômodo. Só quando me viro de fato para o sujeito percebo, assustado, que o homem é praticamente cego! Ele se curvava, quase a mergulhar, no livro para absorver toda a luz dali refletida. Com uma avidez que nunca havia visto antes, aproveitava com fúria os fragmentos luminosos que sua retina conseguia captar. Talvez tenha uma doença degenerativa e está ficando cego aos poucos, pensei. Os desenhos e as palavras eram as últimas frações da realidade visual que teimava por fixar em sua retina. As sombras deitavam sobre seu mundo, como um crepúsculo longo e lento, e a cultura visual impingia-lhe uma reverência que o fazia curvar-se. Mas estava claro ali que não se curvava subjugado, antes mergulhava com todo o prazer possível naquele mundo de sombras que estava sendo anunciado, por isso delirava.... e eu, um bruto, só fui capaz de esboçar pesar.

Um comentário:

headphone disse...

O olho mais bonito que eu vi até hoje foi de uma menina cega. A íris tinha um azul cerúleo esbranquiçado, mas porra, eu, que enxergo, a admirar a cor dos olhos cegos. Pesar depois.
Mas satisfação bovina, hein.